Seria injusto não falar de Beth Carvalho

Eduardo Raddi
4 min readApr 21, 2020

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Um pouco sobre sua trajetória, alcunha de madrinha, voz política, e relação de amor com o Botafogo de Futebol e Regatas.

Como amante do Samba e botafoguense inveterado, ao ouvir “Nos Botequins da Vida”, disco de Beth Carvalho de 1977, no momento em que olhava a bandeira alvinegra tremulando no canto do quarto, senti súbito impulso de escrever um pouco sobre essa figura tão importante para a nossa tão diversa e opulenta cultura brasileira, e falar sobre sua relação de amor com meu time do coração e sua torcida.

Trajetória Musical

Tendo como algumas de suas principais referências Aracy de Almeida, Maysa, e Elizeth Cardoso, numa época de crescente efervescência do violão da Bossa-Nova, e andando com uma turma do naipe de Arthur Verocai, Danilo Caymmi e Paulinho Tapajós, Beth Carvalho passou a fazer parte de um novo movimento que buscava integrar o baião, do até então subestimado Luiz Gonzaga, à Bossa-Nova carioca. Era o começo da Toada Moderna, que resultou em seu primeiro LP, “Andança”, cuja faixa título ficou em terceiro lugar no Festival Internacional da Canção de 1968. A partir daí, extremamente influenciada pela música de Clementina de Jesus, Beth passa a beber da mais pura fonte do samba. Abandona a gigante EMI (na época Odeon) e, para ter mais liberdade artística, assina com a pequena gravadora Tapecar.

Beth Carvalho e Cartola (1974)

Madrinha do Samba

Definitivamente a alcunha não é a toa. Beth foi até o pináculo esquecido do samba: Nelson Cavaquinho e Cartola, dois gênios da Estação Primeira. Procurou ambos. Conheceu Nelson num bar no Rio em 1973, e no mesmo ano gravou “Folhas Secas”, alavancando a carreira do poeta boêmio, que pouco tempo antes tocava em bares a troco de comida. Um ano depois, em 74, em busca de repertório, foi ao morro da Mangueira procurar pelo outro icônico compositor verde e rosa, que na época alguns tinham como falecido. Quando perguntado, ele disse que tinha certas canções compostas. Mostrou “As Rosas não falam”, “O Mundo é um Moinho”, “Aconteceu” entre outras. O resto é história.

Beth e Zeca

Beth Carvalho ainda descobriria jovens talentos. No terreiro do samba do Cacique de Ramos (que não ficava em Ramos, e sim na Rua Uranos 1.326, em Olaria), se reuniam compositores para apresentar mutuamente seus respectivos trabalhos. Foi amor a primeira vista. Ali começava a carreira de um craque do partido alto, e outro ilustre torcedor alvinegro: Zeca Pagodinho. No mesmo terreiro, conheceu uma banda que trazia de volta ao samba as influencias tribais do batuque e instrumentos como Tantã e Banjo. Tudo isso, amalgamado a um suingue astuto e de andamento rápido. Se tratava do Fundo de Quintal, que participaria da gravação do disco que a elevaria a um degrau ainda mais alto na prateleira de ícones da música brasileira: “De Pé no Chão” de 1978. “Vou Festejar” é até hoje cantada como um mantra em estádios de futebol ao redor do Brasil.

O apresso de Beth, tanto pelas suas influências, os baluartes da velha guarda, quanto por jovens artistas talentosos e totalmente desconhecidos, é algo a ser reconhecido como um traço adorável de sua rica personalidade.

Voz política

“Eu só acredito no modelo Socialista. É o único que pode salvar a humanidade, não tem outro.”

Filha de João Francisco Leal de Carvalho, viu seu pai ser preso durante a ditadura de 64. Não é preciso explicar a posição política de Beth. Logo que sua voz passou a ser ouvida através da música, a voz política também foi. Em plena ditadura gravou “Saco de Feijão”, escancarada crítica a exorbitante inflação e ao baixo salário mínimo da época.

Os maiores artistas sempre são os subversivos. Beth me lembra a alma rebelde de Rita Lee, a paixão insurgente de Milton e Chico, e , como o futebol também é uma arte e pode ser uma representação do marginal, se de acordo com a denominação certeira de Nelson Rodrigues, João Saldanha era “João sem Medo”, Beth Carvalho tem toda a cara da representação feminina, “Beth sem medo”.

Beth e o Botafogo

- O jogo mais marcante que vi foi o do gol do Túlio, no primeiro Brasileiro conquistado pelo Botafogo, em 1995, naquela partida contra o Santos, em São Paulo. Na verdade, é o segundo título, porque agora reconheceram aquele de 1968. Mas na época, era como se fosse o primeiro. O Túlio foi uma maravilha, arrasou. E virou meu ídolo. Depois desse Brasileiro, teve um aniversário meu que ele apareceu de surpresa lá em casa… Aquele time era muito bom. Tinha ainda o Gottardo, o Gonçalves, o Donizete.

Beth Carvalho era a Madrinha do Samba, e nós, com orgulho, podemos afirmar que é, e sempre será, a Madrinha do Botafogo. Nascida em família de botafoguenses, herdou a paixão dos pais, e antes de conhecer as folhas secas de Nelson Cavaquinho, foi apresentada à folha-seca de Didi. Antes do verde e rosa da Mangueira, veio o preto e branco do Glorioso. Ficou deslumbrada com o futebol revolucionário da estrela solitária de 1962, que além de Didi, contava com Nilton Santos, Garrincha, Amarildo…e as reticências seguem. Mais tarde, outro craques como Jairzinho, Paulo Cezar Caju, Afonsinho, e Marinho, passariam a frequentar o cacique ao seu lado. Em seus sambas, Beth sintetizava perfeitamente a paixão do torcedor alvinegro, calorosamente cantando do fundo do peito, de maneira catártica, a esperança de dias melhores e a nostalgia de tempos passados. E por falar em nostalgia, a saudade bate até hoje em General Severiano.

É tão bonito ver minha gente sorrindo de emoção. O meu Brasil de ponta à ponta chorando, vibrando, saudando o Botafogo campeão” -Beth Carvalho

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Eduardo Raddi

Acadêmico de Jornalismo, baterista d'O Grito, amante das artes (sobretudo música), botafoguense inveterado, compartilho experiências, resenhas e claro, cultura.