Heysel: a tragédia esquecida do futebol e os prelúdios de Hillsborough

Eduardo Raddi
5 min readApr 25, 2020

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15 de abril foi aniversário da famosa tragédia de Hillsborough. Mas, porque não falamos de Heysel? Um desastre de dimensões enormes, numa final de Champions League, envolvendo a própria torcida do Liverpool? O fatídico evento, que mudou a história do esporte, não é frequentemente abordado pela mídia tradicional.

Contexto

No dia 29 de maio de 1985, no estádio de Heysel, em Bruxelas, o Liverpool, de Kenny Dalglish e Ian Rush, enfrentaria a Juventus, de Michel Platini e Gaetano Scirea, pela tão aguardada final da Liga dos Campeões da Europa.

Das 59 mil pessoas que iriam ao jogo naquela tarde, certamente ninguém fazia ideia do que estaria por vir. Ainda antes da partida começar, um tumulto começa a se propagar. Os hooligans ingleses jogam pedaços de pedra retirados das paredes do decadente estádio na torcida rival. Separados dos italianos por poucos metros, uma cerca e meia dúzia de policiais, os ingleses, munidos com pedaços de metal arrancados dos corrimãos, não tiveram a menor dificuldade de partir para cima dos que estavam no setor Z.

No caso, os ultras da Juventus estavam do outro lado do estádio. No setor Z havia apenas famílias e torcedores normais, que acuados, instintivamente correram na direção contrária. Eles foram prensados a um muro que acabaria colapsando, aliviando um pouco a pressão dos que estavam asfixiados, mas ferindo os mais próximos a ele. 39 pessoas morreram sufocadas ou pisoteadas, e 600 ficaram feridas. Milhões de pessoas assistiam o desenrolar da tragédia pela televisão. Ainda assim o jogo aconteceu.

Foto de Eamonn McCabe, que cobria o jogo

O “segue o jogo” e a polêmica comemoração de Platini

Michel Platini levança a taça

O objetivo dos oficiais da partida era que os jogadores não soubessem o que se passava nas arquibancadas, mas quando do vestiário do Liverpool ouviram um grande estrondo, um dos titulares, Alan Kennedy, subiu para ver o que se passava. O muro havia desabado e as cenas já eram desesperadoras. Quando souberam, outros subiram. Em lágrimas o técnico do Liverpool, Joe Fagan, tentava sem sucesso acalmar os ânimos da torcida, que ainda estava a flor da pele, agora mutuamente, já que os ultras da Juventus, observando o que acontecia do outro lado do estádio, ficaram indignados e agressivos.

“Quando entramos no campo, não tinha como não notar o muro partido ao meio, e a ambulância ainda ali” -Alan Kennedy.

“Foi difícil jogar um jogo de futebol sabendo que 39 pessoas estavam mortas do lado de fora do estádio. Não deveria ter sido jogado” Jim Beglin (zagueiro do Liverpool)

“E no final a gente só sentia aquele vazio… jogamos uma partida para nada, as pessoas perderam suas vidas, nada importava” Ronnie Whelan (meia do Liverpool)

Estávamos no auge de nossas carreiras, mas também de luto pelos 39 mortos. Foi uma sensação horrível, não desejo a ninguém” Sergio Brio (zagueiro da Juventus)

Enquanto os corpos eram colocados na parte de fora do estádio para que não fossem vistos durante o jogo, e os feridos atendidos, dirigentes da UEFA decidiram que a partida aconteceria. Em campo, Michel Platini comemorava de maneira efusiva o gol que daria o título a Juventus. Será que o francês não sabia que 32 torcedores alvinegros morreram? Segundo o goleiro alvinegro Steffano Tacconi, todos os jogadores sabiam.

É chocante a imagem das roupas das vítimas jogadas pela arquibancada

Prelúdios para Hillsborough

Em 1985, sete dos últimos oito campeonatos europeus haviam sido vencidos por clubes ingleses. Enquanto em campo era o auge, fora dele a situação era de total decadência. Apenas oito dias antes do incidente na Bélgica, o estádio do Bratford City foi palco de cenas traumáticas. Tendo sua base construída em madeira, bastou uma ponta de cigarro acesa jogada no chão para que, em poucos minutos, a arquibancada principal ardesse completamente em chamas, deixando 56 mortos.

Os estádios ingleses eram velhos, ficavam superlotados, e não havia nenhuma logística plausível de segurança por parte das organizações do país. No mesmo ano de 1985, o jogo entre Luton Town e Millwall foi mais um prelúdio para o que aconteceria quatro anos depois. Em meio a um conflito entre policiais e hooligans, grande parte da torcida teve que escapar para dentro do campo, e muitos ficaram prensados nas grades. Por sorte não houve fatalidades graves.

Mesmo depois da punição da UEFA em função do que aconteceu na Bélgica, em que clubes ingleses foram proibidos de jogar partidas de torneios europeus durante cinco anos (o Liverpool foi condenado a seis), ainda foi preciso um desastre de magnitude ímpar para que as coisas realmente mudassem por lá.

Relatório Taylor e mudanças no futebol inglês

Hillsborough foi a gota da água, e uma verdadeira desilusão para a sociedade inglesa. Muitos associam as mudanças à primeira-ministra Margareth Tatcher, que depois de Heysel começou a exigir determinadas medidas. Porém, as ideias da “dama de ferro” se provaram falhas. A implementação de uma carteirinha para entrar em estádios, que serviria para que os hooligans fossem mais facilmente identificados, se provou ineficaz e burocrática, tanto que foi abandonada logo depois de Hillsborough.

O que realmente fez com que as mudanças que vemos até hoje fossem implementadas, foi o relatório Taylor, liderado por Lorde Taylor com uma sequência de recomendações baseadas numa relação causal de acontecimentos. A partir daí, a cultura do futebol inglês mudaria por completo. Entre as principais mudanças decorrentes do relatório estão: a diminuição da capacidade dos estádios (que ficavam antigamente superlotados, com às vezes cerca de quinze mil pessoas a mais que a capacidade), a divisão de torcida independentemente do nível de rivalidade dos oponentes, a modernização dos estádios e um maior planejamento de segurança nos jogos.

Opinião: Prós e Contras

Com todas essas mudanças, temos os prós e os contras. Por um lado, pelo fato do preço do ingresso ter subido de maneira exorbitante e da mudança cultural que decorreu a partir das medidas de segurança, as arquibancadas se tornaram elitizadas e “frias”. Para falar a verdade, a torcida de hoje na Inglaterra mais parece um público de teatro.

Por outro lado, assistir a um jogo de futebol voltou a ser uma atividade de família, onde as pessoas não precisam mais ter medo da violência ou se preocupar com os problemas graves de infraestrutura e o neglicenciamento de questões básicas de logística como superlotação e policiamento, comuns na década de 80.

E que Heysel seja lembrada, assim como Hillsborough!

Homenagem da torcida da Juventus às 39 vítimas da tragédia de Heysel

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Eduardo Raddi

Acadêmico de Jornalismo, baterista d'O Grito, amante das artes (sobretudo música), botafoguense inveterado, compartilho experiências, resenhas e claro, cultura.